segunda-feira, 18 de maio de 2015

“A Carta”, um conto de Milena Oliveira sobre "Contos para uma Noite Fria"

           
 Antes de falar sobre “A Carta” propriamente, queria fazer uma breve contextualização. Certa vez, em um curso sobre Poesia e Pintura, a professora disse, citando não lembro quem (e por isso não dou nome aos bois), que a melhor crítica de qualquer obra de arte é sempre uma nova obra de arte. Segundo esse pensamento, melhor do que qualquer livro, artigo ou ensaio sobre determinada obra seria um novo quadro, conto ou poema nela inspirada, pois não haveria modo mais adequado de se expressar o sentimento suscitado do que transformá-lo em nova Arte.
            Longe de mim querer elevar meus Contos para uma Noite Fria a um estatuto de Arte; no entanto, foi impossível não lembrar dessa fala de minha professora quando, essa semana, a melhor e mais sensível “crítica” que já recebi, e que, imagino, virei a receber, chegou às minhas mãos...
Ilustração feita pela Dandi para o conto
"A Melancolia do Piano".
            Tudo começou com um bate-papo na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, onde conversei com toda a animadíssima equipe de vendedores sobre os meus Contos para uma Noite Fria. Depois do bate-papo, sorteei dois exemplares do meu livro. Duas moças supersimpáticas, a Simone e a Milena, o ganharam. Já no dia seguinte, a Milena entrou em contato comigo pelo Facebook, dizendo que já havia lido o livro, que gostara e que, em breve, eu receberia notícias dela pelo correio. Com um sorriso de orelha a orelha, li aquele feedback positivo e fiquei sem saber o que mais esperar, embora, curioso como sou, tenha ficado intrigado com aquele comentário enigmático. Qual não foi, pois, minha surpresa ao receber um lindo envelope verde. Logo o abri, tomando cuidado para não rasgar. Dentro havia três folhas de papel de carta, com texto na frente e no verso. Não sabia o que esperar e jamais teria imaginado que recebera “A Carta”, cuja transcrição – devidamente autorizada pela autora – segue abaixo.
            Não é preciso dizer que me emocionei com a trajetória de Sophia, cujo percurso tanto me evocou a lembrança do pianista de meu conto “A Melancolia do Piano”. Nem posso deixar de mencionar que “O Germe da Imaginação” também é o conto de que mais gosto. Em suma, ouso dizer que o espírito de meu livro transcende em “A Carta” e me alegra saber que minha escrita suscitou tudo isso. Sem mais spoilers, vamos a “A Carta”, estou certo de que quem gostou de meu livro, vai gostar tanto dela quando eu.


A Carta
Por Milena C. Oliveira


Ilustração de Dandi para o conto
"O Germe da Imaginação".
         Escreva-me, era o que repetidamente soava em sua mente, enquanto Sophia lia seu novo livro Contos para uma Noite Fria.
         Tivera o prazer de conhecer o autor e ganhar o livro de suas mãos.
         Enquanto aguardava a dedicatória, um convite inusitado, tornar-se escritora, não de um livro que seria o próximo best-seller do New York Times, mas de suas impressões e sentimentos despertos pelo livro, agora autografado. Escreva-me, disse o autor.
         Ao concluir a leitura, Sophia trancou-se em seu quarto, que era na verdade, o antigo porão da casa de sua tia, com quem viera morar alguns anos após ficar órfã.
         Com caderno e caneta em mãos, deitou-se e deixou “O Germe da Imaginação” – seu conto favorito – criar força dentro de si e externar-se em palavras.
         Quanto mais escrevia, percebera crescente sensação de completude preenchendo todo seu ser. Concomitante, sentia esvair-se a consciência a cada palavra acrescentada ao papel.
         O pânico tomou conta de sua mente. O coração pulsava forte, uníssono em todo seu corpo.
         O que está acontecendo? pensou.
         Interrompeu bruscamente a escrita. Respirou fundo. Após acalmar-se retornou à carta.
         Expressando suas impressões, submergia-se em um leitoso oceano. Dessa vez, não teve medo, pois quanto mais distanciava-se da luz e do ar da superfície, melhor e mais radiante sentia-se.
         Notou Sophia, que por onde nadava, um rastro azul marcava o branco impecável do oceano. Lembrou então, que estava escrevendo uma carta para o autor que recentemente conhecera e viu-se deitada em sua cama, encarando o branco papel e a caneta azul que tinha em mãos.
         Não estava mais a nadar. Não sentia-se mais completa e feliz.
         O que está acontecendo? verbalizou, consigo.
         Retomou a escrita e aquela maravilhosa sensação retornou. Só então percebeu que enquanto escrevia sentia a magia envolver todo seu ser, transformando sua realidade em algo fantástico, impossível às leis da física.
         Sentia sua realidade desintegrando-se e sem medo entregou-se, tendo, contudo, o cuidado de destrancar a porta e escrever um pequeno bilhete Enviar para o autor, que deixou entre a carta e o envelope.
         Sabia agora Sophia, que o oceano era o papel e a tinta era a essência de seu próprio ser, que se desfazia a cada palavra escrita.
         Nadar era escrever, escrever era descobrir-se, mas descobrir-se era morrer.
         Cogitou por um momento.
         Estava pronta para deixar a existência?
         Deixaria mesmo de existir se se transformasse em tinta sobre o papel?
         Uma poesia ou um conto talvez lhe preservasse melhor em memória, mas uma carta?
         Valeria a pena deixar de ser menina e transformar-se em carta?
         Sentia-se tão feliz, completa e harmoniosamente alinhada que não teve dúvida, não nascera menina, nascera carta e só agora se descobrira.
         Valeria a pena ser uma carta endereçada a quem mal se conhece?
         Seria mais útil uma carta ao governo? À igreja? Aos parentes e amigos?
         Mas utilidade nada tem a ver com magia.
         Toda magia tem um preço. Talvez esse preço seja a loucura deste mundo para seres fantásticos que jamais foram, de fato, desta terra.
         Sim, vale a pena ser carta.
         Sim, vale a pena ser uma carta para este autor, que com uma frase tão singela – Escreva-me – libertou da escuridão e do assombro a menina que nunca fora menina, sempre fora carta. Sempre fora tinta fresca em um oceano leitoso de papel.
         A menina está melhor agora, liberta pelo germe da imaginação e a carta está enfim nas mãos do autor que a libertou.
         Se haverá uma resposta, só o autor poderá dizer.


O texto fala por si e só tenho a agradecer a Milena Oliveira pelo carinho e por ter autorizado a reprodução de seu texto aqui no Cérebro-Casa. “A Carta” original, cuja fotografia reproduzo ao lado, vai sempre me lembrar de que devo dizer mais vezes Escreva-me...

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Fernando Pessoa e a Defesa da Literatura Policial


         Pouca gente sabe, mas Fernando Pessoa foi autor de várias histórias policiais, que, infelizmente, encontram-se todas fragmentárias e, em alguma medida, incompletas. Suas histórias, porém, são bastante interessantes por apresentarem, aos moldes de Sherlock Holmes e Auguste Dupin, dois detetives geniais: o ex-sargento inglês William Byng e o médico português Dr. Abílio Quaresma.
         Para além de suas narrativas policias (ou policiárias, como preferia dizer), Pessoa escreveu também um ensaio (também incompleto) chamado “História Policial” no qual analisa diversas obras, defendendo o gênero e expondo o que, para ele, seria a história policial ideal.

Sem querer me alongar muito, gostaria apenas de citar o trecho deste ensaio em que Pessoa defende com mais fervor o gênero policial, que desde a sua época, e ainda hoje em dia, é muito desprezado pela crítica. Nunca tive dúvidas quanto à qualidade e importância do gênero, mas, depois destas palavras de Pessoa, espero que mais gente reveja seus conceitos. A quem tem ainda o preconceito, fica aqui essa defesa legítima de um gênero desprezado por muitos. Eis o que fala Pessoa:
   
         “Uma ideia muito errada tem tido grande aceitação – nomeadamente que uma história policial não passa de uma obra de tipo inferior. Os críticos, em especial aqueles que se ocupam de obras poéticas e filosóficas, são unânimes na sua depreciação deste tipo de história. Olham-na como algo que não necessita de imaginação e de pouca ou nenhuma lógica. Mas estão enganados num ponto – nunca tentaram analisar as histórias de que falo, nunca mediram acerca daquilo que uma história policial realmente é e nas faculdades necessárias à sua escrita. Alguns desses críticos podem ser desculpados, pois, como estão muito habituados ao trabalho, nesta área, de alguns senhores, que não irei mencionar, e de muitos outros de valor literário semelhante, inferiram correctamente, a partir do que conheciam, que a história policial não precisa de imaginação, que não precisa de lógica – que, na realidade, qualquer pessoa a pode escrever, desde que não tenha respeito pelo intelecto que possui.
         “Por outro lado, a ideia popular é a oposta. A multidão faz o seu julgamento a partir das mesmas premissas e retira a conclusão oposta. Como a imaginação dos autores de que falei não é superior à imaginação popular; como a sua lógica não é mais perspicaz do que a lógica de um carpinteiro ou de um padeiro (supondo que o intelecto do carpinteiro e do padeiro não é superior ao que se pensa), o homem comum considera que estes autores atingiram o limite da esperteza humana.
         “A multidão, no entanto, erra devido à simples estupidez; os críticos erram porque não analisaram devidamente.”


(Fernando Pessoa, “História Policial” in Histórias de um Raciocinador. Edição e Tradução de Ana Maria Freitas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, pp. 228-9).